15/09/2008



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O presente.


Ele estava no limite. Eram meados agosto, o que significa que ele estava separado dela há mais de dois meses. Dois meses, e toda sua comunicação resumia-se a três cartas com orelhas de burro e duas ligações de longa distância muito caras.

É verdade que quando ela terminou a faculdade e voltou para aquele buraco de onde viera - e que ela chamava de cidade natal -, e ele para a dele, ela teve que jurar que manteria uma fidelidade incorruptível. (Ela marcará encontros ocasionais, mas só por mera distração.) "Ela permanecerá fiel".

Mas ultimamente ele começou a se preocupar. Tem problemas para dormir à noite e quando consegue, tem sonhos horríveis. Fica acordado na cama, rodando e virando embaixo das cobertas, lágrimas jorrando em seus olhos conforme fantasia sobre ela. O juramento entregue à bebida e ao afago tranqüilizador de algum idiota. Finalmente submetendo-se aos carinhos finais de um sexo entorpecedor. Isso era mais do que a mente humana poderia suportar.

Visões de traição assombrando-o, fantasiando horas a fio durante todo o dia. O abandono sexual permeando seus pensamentos. Niguém entendia como ela era realmente. Ele sim, entendia muito bem. Só ele. Intuitivamente captava o que havia em cada canto e fresta de sua alma. Ele a fez sorrir. Ela precisava dele, e ele não estava lá.

A idéia apareceu na quinta-feira. Ele tinha acabado de lavar e encerar o carro do seu pai por alguns trocados e tinha verificado a caixa postal para ver se havia ao menos uma carta dela. Não havia nada, a não ser uma carta-resposta da companhia telefônica questionando-o a respeito de suas necessidades e opiniões. Ao menos alguém se importava com ele o bastante para escrever.

Era uma carta de outro estado. "Pode-se chegar a qualquer lugar por correspondência", pensou. Então isso o fez perceber! Ele não tinha dinheiro suficiente para viajar e visitá-la. Mas por que não enviar-se pelo correio? Seria incrivelmente simples. Se enviaria num embrulho pelo correio; entrega especial.

No dia seguinte foi ao supermercado para comprar o equipamento necessário. Comprou fita adesiva, uma pistola de grampos e uma caixa de papelão bem groso, de tamanho médio e apropriado para uma pessoa do seu tamanho. Ele concluiu que com um mínimo de bagagem poderia viajar perfeitamente confortável. Algumas aberturas pra o ar, um pouco de água, talvez algum aperitivo para comer durante a noite, e seria provavelmente algo muito próximo a um passeio turístico. Sexta-feira pela tarde ele estava pronto. Estava perfeitamente empacotado e o carteiro concordou em apanhá-lo às três horas.

Dentro do pacote marcado como "Frágil", sentado, meio enrolado e descansando no forro de espuma, ele tinha tudo bem planejado. Tentou visualizar o olhar espantado e feliz no rosto dela quando abrisse a porta e visse o pacote. Ela daria gorjeta ao entregador e então abriria a caixa e finalmente ela o veria em pessoa. Ela o beijaria e então eles assistiriam um filme, ou coisa semelhante. "Se eu tivese pensado nisso antes".

De repente mãos brutas seguraram seu pacote e ele se sentiu carregado para cima. Desembarcou com uma pancada num caminhão e seguiu seu caminho.

Longe dali, ela tinha acabado de ajeitar o cabelo. Tinha sido um final de semana daqueles. Ela precisava se lembrar de não beber tanto. Pelo menos não até cair. "Ainda assim, aquele fulano não se aproveitou tanto...", até tinha sido gentil. Depois que terminou ele disse que mesmo assim ainda a respeitava, que o que aconteceu era muito natural, mas que ele não a amava, até sentia alguma afeição. Mas, enfim, eles era adultos e isso acontecia.

"Ah, quanto esse sujeito poderia ensinar a ele", mas ele parecia ter ficado para trás já há muitos anos.

Sua melhor amiga apareceu pela entrada de serviço, passou pela lavanderia e foi para a cozinha. Tinha essa mania de ir entrando como se a casa fosse sua. "Meu Deus, lá fora está um calor insuportável". "É mesmo, estou até grudenta!" Ela apertou o cinto de seu ropão de algodão com babado de seda. A amiga passou o dedo sobre alguns grãos de sal na mesa da cozinha, lambeu o dedo e fez uma careta. "Talvez eu devesse comer um pouco de sal, mas nunca sei o que faz subir ou descer a pressão".

Ela se levantou da mesa e foi até a pia, onde pegou um frasco de vitaminas coloridas. "Quer uma? Dizem que é melhor do que um bife, tipo danoninho, só que melhor". "Acho que nunca mais vou beber tequila outra vez"

Ela se sentou mais próxima à pequena mesa onde estava o telefone. "Talvez o cara de ontem ligue," e esperou algum olhar da amiga. Como nada surgiu no rosto da outra, prosseguiu: "Meu Deus, ele parecia um polvo. Mãos por toda parte." Ela gesticulou, levantando a os braços para cima num gesto de defesa. "O caso é que, depois de um tempo, você se cansa de lutar, entende? E no fim das contas eu não fiz nada com ele nem na sexta nem no sábado, então eu meio que aliviei e deixei ele fazer o que queria."

Foi aí que o carteiro tocou a campainha da ampla casa. Quando ela abriu a porta ele a ajudou a carregar o pacote para dentro. O carteiro entregou a ela um recibo amarelo e outro verde, assinado, e recolheu 50 centavos de gorjeta que ela havia conseguido na pequena carteira bege de sua mãe que estava num esconderijo.

"O que você acha que é?" perguntou a amiga. Ela ficou de pé com os braços cruzados atrás das costas. Olhou fixamente para o volume de papelão marrom no meio do quarto. "Sei lá."

Dentro do pacote, ele se revirava de exitação ao ouvir as vozes abafadas. A amiga arranhou sua unha na fita adesiva, percorrendo-a até o centro da caixa. "Porque você não olha o endereço do destinatário e vê de quem é?". Ele sentiu seu coração batendo. Ele podia sentir a vibração dos passos. Seria em breve.

Ela andou em volta da caixa e leu a etiqueta com a tinta borrada. É daquele idiotam, disse. Dentro da caixa ele tremia com a expectativa. "Bem, talvez você deva abrir." Ambas tentaram erguer a aba do grampo. "Merda," disse ela, grunhindo. "Ele deve ter lacrado com pregos, aquele imbecil." Elas puxaram o grampo de novo. "Droga, precisa de uma broca pra abrir essa coisa!" Elas puxaram de novo. "Puta que o pariu", disseram juntas, e continuaram de pé, respirando pesadamente ao lado da caixa, dentro da qual ele imaginava se não havia exagerado na resistência do pacote. O esforço dela vai ser recompensado, pensou.

"Porque você não pega uma tesoura?" disse a amiga. Ela correu pra cozinha, mas tudo o que conseguiu encontar foi uma pequena tesoura escolar de pontas arredondadas. Aquilo não serviria. Então se lembrou que seu pai mantinha uma coleção de ferramentas no porão. Ela correu escada abaixo, e quando voltou carregava um enorme estilete metálico na mão. "Isso foi o melhor que eu consegui encontrar." Estava bastante ofegante. "Toma, corta você. Tô morta!", e afundou no sofá.

A amiga tentou abrir uma brecha entre a fita adesiva e a extremidade do grampo no cartão, mas a lâmina era muito grande e não havia espaço suficiente. "Puta que pariu essa caixa!" Ela estava irritada. Depois sorrindo, "Tive uma idéia." "O que?" disse ela. "Apenas olhe," disse a amiga.

Dentro do pacote, transtornado com a excitação e mal conseguindo respirar, ele sentia sua pele pinicar com o calor e seu coração bater na garganta. Seria em breve.

A amiga manteve-se completamente ereta e deu a volta até o outro lado do pacote. Então dobrou os joelhos, agarrou o cortador com as duas mãos, respirou profundamente, e mergulhou a longa lâmina bem no meio do pacote, através da fita adesiva, através do cartão, através do forro, através da espuma, terminando bem no meio da cabeça dele, que se abriu rapidamente, causando pequenos e harmoniosos arcos vermelhos a pulsar levemente no sol da manhã.

6 comentários:

Media Luna disse...

Xuli, achei um horror. Mas dei risada.

Nao consegui ver o filme do post aí de baixo (escrevi "aí de baixo por que nao sei escrever "shweps"").

Um beijo

Media Luna disse...

Parece que também nao sei usar "aspas".

:: Carla Irusta :: disse...

Xuli,

Las fans piden desesperadas la vuelta de mêssiê Ortega. Vovlerá o ha desaparecido en "La felicidad-a-a-a-a" ?

Beijo

Pablo Maurutto disse...

Como diriam os paulistas: "pusta mina estabanada, meu!"

Mais um encontro bacana com o talento dos Irustas!

Resolvi fazer um bloguizinho também. Com coisas mais particulares que o meu infantil que Carlinha jogou ao vento (fiquei todo orgulhoso!).

Quando quiser, Salvador e a residência Maurutto estão de portas abertas!

Abraço, meu velho!

Pablo Maurutto disse...

Ah, claro! Pra facilitar:

Minhas insônias:
http://maurutto.blogspot.com/

Meu sonho:
http://ladentrodamata.blogspot.com/

Olinda e Alceni disse...

Uau!!! Totalmente desconhecido esse teu talento! Lembrou-me um pouco algo da literatura argentina dos anos 70, Talvez Arlt, náo sei. Bizarro, mas com mto rítmo!

Olinda